Você deve se lembrar disto


1942. O Brasil rompe relações diplomáticas com os países do Eixo. Os Estados Unidos da América lançam um ataque a Tóquio em resposta a Pearl Harbor. Inicia-se a Batalha de Stalingrado. O governo brasileiro declara estado de guerra para todo o território nacional. Na efervescência da Segunda Guerra Mundial, estréia, no Hollywood Theater de Nova Iorque, Casablanca.

Considerado por boa parte dos críticos e cinéfilos um dos maiores clássicos de Hollywood, Casablanca vai além dos rótulos limitativos que não abarcam todas as suas nuances e nem sua importância. Consegue estar no pódio de diversas listas de “melhores filmes do cinema”, e ao mesmo tempo, ser adorado pelo seletíssimo público cult.

Casablanca é a adaptação para o cinema de uma peça teatral de Murray Burnett e Joan Alison. Uma viagem de Burnett, em 1938, a Viena, capital da Áustria, fez com que ele percebesse a discriminação promovida pelos nazistas mesmo antes de declarada a Segunda Guerra Mundial. Todavia a mais relevante de suas percepções se deu no sul da França, onde ele conheceu um clube noturno freqüentado por clientes de nacionalidades distintas, falando as mais variadas línguas. O ambiente era embalado pelo piano melodioso de um pianista negro. Eis a inspiração do grande sucesso.

Os gêmeos Julius J. Epstein e Philip G. Epstein e Howard Koch receberam os créditos pela adaptação da peça para o cinema. Enquanto este foi responsável pelos elementos políticos e melodramáticos, aqueles deram o tom de comédia. O não-creditado roteirista Casey Robinson contribuiu para a série de encontros entre Rick e Ilsa no Café. O judeu húngaro emigrado Michael Curtiz dirigiu o filme e deu um enfoque maior aos flashbacks do que estava previsto no roteiro original. A concentração dos esforços de toda a equipe nesse empreendimento seguro e inspirado propiciou a perfeita distribuição de romance, humor, intriga e suspense na trama, além de diálogos repletos de frases-feitas, ironias, blefes e clichês.

A produção de cinema americana da década de 1940 é vigorosa e envolta pelo glamour das grandes companhias cinematográficas. A qualidade das histórias e os roteiros inteligentes ainda encantam o público. Vinhas da Ira, Rebecca, O Grande Ditador, A Felicidade Não Se Compra, O Tesouro da Sierra Maestra, Cidadão Kane e o próprio Casablanca figuram entre os vários filmes notórios que foram produzidos nesta época.
Em 1942, os EUA já haviam aderido à Guerra formalmente ao lado dos países Aliados, mas ainda não se tinha nenhum indicativo de quem ganharia, apesar da expectativa óbvia por parte dos americanos de que eles seriam os vencedores. O cinema hollywoodiano foi fortemente influenciado pela temática da guerra, mas não se prendeu a ela. Casablanca assumiu o importante papel de propaganda anti-guerra nesse contexto.
Pensava-se que o filme seria um sucesso apenas por se desenrolar num dos olhos dos vários furacões da Segunda Guerra – o norte da África. Mas os méritos de Casablanca vão além. Amor, relações de interesses, falcatruas, corrupção, patriotismo, a luta pela liberdade, identificação com uma causa são alguns dos motes da trama. A linguagem universal dos sentimentos e a abordagem ampla das temáticas ultrapassam os referenciais históricos e se eternizam.
A trama pode ser dividida em antes e depois da tomada de Paris pelos alemães. A primeira parte se passa em Paris e é apresentada enquanto flashback. A segunda se passa na cidade homônima ao filme, Casablanca, no Marrocos, e se desenvolve ao longo de toda a película.

De 1940 a 1944, a França de Vichy era o estado francês com um governo de fachada que agia de acordo com as deliberações da Alemanha nazista. Foi estabelecido após a rendição do país à Alemanha em 1940. Os alemães controlam não só boa parte da França, mas teoricamente, as colônias dessa nação. Na prática, os governantes das colônias ou eram franceses ou estavam ligados à tradição francesa e gozavam de relativa autonomia. Por mais que tratassem os oficiais nazistas com solicitude, nem sempre eram diligentes e céleres no que diz respeito o cumprimento de suas funções.

Para fugir da Europa, os refugiados e aventureiros dispunham de várias rotas alternativas que se apoiavam em países e áreas “neutras” na Guerra. Uma das rotas ia de Paris, na França, a Lisboa, em Portugal. Nesta cidade, o último ponto na rota, havia o embarque em um navio para o Novo Mundo. Casablanca, no Marrocos, norte da África, era o penúltimo ponto da rota e estava na área de influência nazista. Somente aqueles que possuíam um salvo-conduto (carta de trânsito) devidamente assinado pelo governo francês poderiam sair desta cidade e rumar em busca da liberdade. Os outros esperavam, esperavam, esperavam.
Nem tudo que se passava nas terras marroquinas, quentes e exóticas, era de domínio alemão. Casablanca confluía mais interesses e pessoas do que podia abarcar. Efervescia. Indivíduos de vários lugares e motivações transitavam, conversavam, comercializam, enfim, realizam as mais diversas atividades seja em prol de conseguir um salvo-conduto ou apenas para tornar a espera pela partida menos insuportável. O desespero dos exilados era sentido de longe pelos espertalhões que praticavam atos espúrios: de pequenos furtos a exorbitância no preço dos artigos vendidos no mercado negro.
Um dos locais mais badalados da cidade é o Rick’s Café Américain. Seu dono, Rick Blaine (Humphrey Bogart) é um homem cínico, amargo e misterioso, que busca se envolver o mínimo possível com política, já que seu bar é freqüentado por todo o naipe de clientes, como refugiados, expatriados, populares, ladrões, policiais, dentre estes, o chefe de polícia corrupto Capitão Renault (Claude Rains).

A chegada de um grupo de oficiais nazistas, liderados pelo comandante alemão Heinrich Strasser (Conrad Veidt) coaduna com dois eventos importantíssimos. O primeiro diz respeito ao assassinato de dois mensageiros alemães que portavam dois salvo-condutos e o concomitante roubo dos documentos. O segundo se relaciona a chegada de um dos principais líderes da resistência ao jugo nazista na Europa, Victor Laszlo (Paul Heinred) e de sua esposa Ilsa Lund (Ingrid Bergman). O casal necessita de salvo-condutos para ir de encontro à liberdade e poder articular com outros líderes a subversão. O comandante Strasser deve garantir que a Laszlo não cheguem os salvo-condutos e que sua fuga não tenha sucesso.

Boatos correm de que o possível ladrão dos salvo-condutos Ugarte (Peter Lorre) articulará a venda dos documentos à noite no bar de Rick. Capitão Renault, especialista em bajulação e especialmente interessado em agradar o comandante Strasser, convida-o ao local do negócio, onde assistirão privilegiadamente a prisão do infrator. Ilsa Lund e Victor Laszlo, previamente informados da transação, também vão ao bar de Rick.

Ugarte, temendo ser pego com os salvo-condutos, entrega-os a Rick e pede que os guarde até que não haja nenhum perigo. Contudo, antes que o ladrão pudesse efetuar a venda, é preso no bar sob as ordens do Capitão Renault e acaba morrendo sob custódia da polícia sem revelar o paradeiro dos papéis.

No bar, Ilsa reconhece Sam (Dooley Wilson), o pianista, e pede que ele toque As Time Goes By. Incomodado com a música, Rick reclama com Sam e reencontra a razão de sua amargura: Ilsa Lund. Mal sabe ele que ela é esposa de Victor Laszlo.

O sofrimento de Rick ao vê-la é inevitável. O álcool e a melodia de As Time Goes By reavivam as lembranças advindas com o inusitado encontro. Os detalhes do passado emergem. Na iminência da ocupação alemã, Ilsa e Rick apaixonam-se em Paris e vivem um romance intenso e inesquecível. A efetiva tomada à cidade representava perigo para ambos, especialmente para ele. O casal resolve fugir, mas no dia marcado, Ilsa não aparece e deixa apenas um bilhete de despedida para Rick. Ele parte sem entender o que havia acontecido.

Na manhã seguinte, Victor Laszlo conversa Ferrari (Sydney Greenstreet), “figurão” do mercado negro e rival de negócios de Rick, e toma conhecimento das suspeitas de que os salvo-condutos se encontram na posse de Rick.

O dono do bar, emocionalmente abalado coma a presença de Ilsa, sai de sua postura amarga e omissa em relação às pessoas que o cercam e tem uma boa ação. Uma jovem búlgara, que mantinha uma relação de favores com Capitão Renault, vai até Rick indagar sobre a confiabilidade do Capitão e sua capacidade de cumprir o prometido. Fala da situação trágica em seu país de origem, do seu casamento e da necessidade de fugir para os EUA com seu jovem esposo. Rick se mostra frio com a moça e recomenda que volte para a Bulgária. Inesperadamente, ele se dirige a mesa de jogos e sugere que o esposo da moça jogue em um determinado número. Ele o faz e ganha uma quantia suficiente para “comprar” sua liberdade e de sua esposa. Os funcionários do bar parabenizam enfaticamente Rick pelo seu ato bondoso e condescendente.

Laszlo, em particular, fala com Rick e implora pelos papéis, mas este se recusa a ajudá-lo e sugere que pergunte o motivo a sua esposa Ilsa. A conversa é interrompida quando um grupo de alemães liderados por Strasser começa a cantar e tocar no piano “Die Wacht am Rhein”, uma canção patriótica alemã. O clima fica tenso quando Laszlo ordena que a banda da casa toque “La Marseillaise”, o hino da França, e leva os freqüentadores do bar a cantar com ele, abafando as vozes dos alemães. Em resposta, Strasser ordena que Renault feche o bar.

A resistência, liderada por Laszlo, se articula na calada da noite. Ilsa, novamente dividida entre seus dois amores e perturbada com o indicativo de que Rick possui os salvo-condutos, resolve confrontá-lo no bar deserto. Quando ele se recusa a ajudá-la, ela o ameaça com uma arma e finalmente explica o mal-entendido acontecido em Paris. A moça acreditava que seu marido estivesse morto quando se entregou ao amor por Rick. Pouco antes da fuga do casal, ela descobre que Victor conseguiu escapar com vida de um campo de concentração nazista. Escondido e debilitado, o esposo precisa de sua ajuda. Sem poder contar a verdade na época para Rick, ela não o acompanha na retirada e não lhe dá nenhuma explicação para isso.

Após a revelação, Ilsa sugere que Rick dê um dos salvo-condutos para Victor. Com o revolucionário longe e seguro, o casal finalmente poderá se entregar novamente ao amor interrompido em Paris. Rick promete pensar.

Laszlo e o garçom Carl (S. Z. Sakall) abrigam-se no bar para se proteger da ronda noturna da polícia. Enquanto Carl, por ordens de Rick, leva Ilsa discretamente até seu hotel, o dono do bar e o revolucionário conversam. Este revela a Rick que sabe do seu amor por Ilsa e pede que salve sua amada, com um dos salvo condutos. Antes que Rick pudesse tomar qualquer decisão, a polícia chega e prende Laszlo sem motivo razoável.

Em uma visita a delegacia de polícia local, Rick convence Renault de que usará os salvo-condutos para salvar a si e Ilsa e pede que o ajude num estratagema para convencer Ilsa e Victor, de que, na verdade, os documentos serão para eles. Para o sucesso do plano, Rick pede a Renault que libere os demais policiais do trabalho e que solte Laszlo provisoriamente, em prol de um motivo mais razoável e efetivo para sua prisão.

No dia seguinte, Rick marca um encontro com Renault em seu bar e pede que ele aguarde no escritório. Tão logo, Ilsa e Victor chegam. Quando Rick entrega os salvo-condutos a Laszlo, Capitão Renault sai do escritório tenta prender este. Contudo, o dono do bar mantem uma arma apontada contra Renault e o força a ligar para o aeroporto para ratificar o embarque do casal no avião. Esperto, o Capitão liga para o Major Strasser que percebe toda a situação.

Já no aeroporto, enquanto Victor se encarrega dos últimos detalhes da viagem e Renault preenche os salvo-condutos, Rick e Ilsa se despedem. Não é o dono do bar que viajará com a amada para Lisboa e sim, Victor. Usando de sua razoabilidade – e de um pouco de empatia, Rick sacrifica o seu amor, em prol do ideal de liberdade, personificado na figura de Laszlo. Explica para a moça, porque ela deve ir com o esposo e não com ele. Neste momento, eles travam um dos diálogos mais célebres do filme: “E nós, Rick?”, pergunta ela. “Nós sempre teremos Paris”, ele responde. Depois da despedida, o casal Laszlo embarca com segurança no avião.

Major Strasser dirige-se até o aeroporto para tentar contornar a situação, mas ao tentar impedir a decolagem do avião, Rick atira nele. Quando os demais oficiais de polícia chegam, Renault ordena: “Detenham os suspeitos de sempre” e joga uma garrafa de água Vicky no lixo num claro protesto contra o governo francês. Sozinhos, Renault sugere a Rick que eles deixem Casablanca e vão para Brazzaville na França Livre.Os dois andam em direção à neblina e Rick diz “Louis, acho que este é o começo de uma bela amizade”.

O encanto do filme não se dá apenas pela narrativa primorosa e audaz. Os excelentes protagonistas fazem com que cada cena seja um incrível deleite. Humphrey Bogart e Ingrid Bergman já eram conhecidos do público antes de Casablanca, por Relíquia e Intermezzo, respectivamente. Mas Casablanca foi, de fato, o divisor de águas nas carreiras de ambos.

Com o ar triste e misterioso, sempre envolto em uma fumaça de cigarro, Rick nos aparece como um dos mais charmosos personagens de Humphrey Bogart. A ironia e o cinismo acompanhariam “Bogie” durante toda a sua carreira, especialmente nos filmes noir. Rick conquista o público pela forma como administra seu bar e pela relação de cumplicidade que estabelece com o pianista Sam. Ele esconde a sua desilusão com a vida no escárnio e no deboche, mas a verdade é que Rick é um homem apaixonado e idealista. Não há como resistir voluntariamente ao charme de Rick e nem como se entusiasmar com seus joguinhos, estratagemas e nem com suas respostas carregadas de cinismo.

Quando Ingrid Bergman aceitou o papel de Ilsa Lund, preocupava-a não saber o final da história. Como Michael Curtiz iniciou a gravação sem que o argumento estivesse concluído, a atriz só tinha acesso ao script de suas cenas na véspera de cada filmagem. Como a intérprete de Ilsa não sabia ao certo quem era o verdadeiro amor de sua personagem, o tom de incerteza e confusão por parte de Ilsa não foi mais do que real. Toda essa casmurrice pode ser lida no olhar doce, apaixonado e arrebatador de Ingrid, que parecia estar sempre prestes a se derramar em lágrimas. Dividida entre o dever de acompanhar o marido idealista e revolucionário e a paixão latente por Rick, Ilsa Lund desperta uma forte empatia em todos aqueles que assistem ao filme.

A canção "As Time Goes By" também foi crucial para o sucesso do filme, pois traduz em versos e em melodia o romance do casal Ilsa e Rick de Paris a Casablanca. Eternizou-se como uma das mais belas canções de amor da história da música. Escrita por Herman Hupfeld, a música não é tocada pelo ator Dooley Wilson no filme. Nas cenas em que interpretou "As Time Goes By", o som das teclas vinha das mãos de Elliot Carpenter, que nas gravações, escondia-se atrás da cortina para tocar. Desde 1999, "As Time Goes By" tem sido usado como tema de abertura dos filmes da Warner Bros.

O filme ganhou as três estatuetas mais importantes do Oscar: Melhor Filme (Michael Curtiz.), Diretor e Roteiro, além das indicações nas categorias de melhor ator (Humphrey Bogart), melhor ator coadjuvante (Claude Rains), melhor fotografia, melhor edição e melhor trilha sonora - comédia / musical. Escolhido como 2º Grande Filme na lista dos 100 Grandes Filmes do Instituto de Filmes Americanos em 1998 e como 1° Grande Filme da polêmica lista dos 100 melhores filmes de todos os tempos do jornal The Times em 2008.

É um ótimo filme para se assistir em noites chuvosas, em tardes ensolaradas e especialmente nas noites estreladas. Para se refletir sobre o amor e entender porque Casablanca é um dos filmes mais amados de todos os tempos.

Ficha Técnica
Casablanca
País/Ano de produção: EUA, 1942Duração/Gênero: 103 min., Drama/Romance/GuerraDireção de Michael CurtizRoteiro de Julius J. Epstein, Philip G. Epstein e Howard Koch
Produção de Hal B. Wallis
Trilha Sonora: Max Steiner
Distribuição: Warner Bros.Elenco: Humphrey Bogart, Ingrid Bergman, Claude Rains, Paul Heinred, Conrad Veidt, Peter Lorre, Madeleine LeBeau, Dooley Wilson, Sydney Greenstreet.

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